3 de maio de 2025

Quem ama


Todo mundo sabe alguma coisa de bíblia. Pelo menos dos 10 mandamentos já ouviu falar. O que nem todo mundo sabe é que tem muito mais de 10. A bíblia reúne centenas de mandamentos, dos mais bacaninhas aos mais bizarros.

O cristianismo como movimento religioso, em suas muitas formas, soube usar esses mandamentos para fazer muito bem o que faz toda religião que ganha alguma importância social - manipular as massas. Hoje, com o poder das tecnologias de comunicação, mais do que nunca.

O maluco nisso tudo é que Jesus que, em tese, deveria ser o centro do cristianismo, pegou essas centenas de mandamentos, empacotou tudo, pôs de lado, e disse “um novo mandamento vos dou” - acabou aquele negócio lá, era muito complicado, dava muito rolo, vamos começar de novo, e agora vai ter um só. E não é o famoso “ame a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”, que virou slogan neofascista com o famigerado Deus acima de todos, não.

O novo mandamento é o seguinte: “amem ao próximo como eu vos amei”. Só isso.

Até Deus saiu da história! É só amar o próximo como ele amou.

Mas como assim Deus saiu? É simples. E didático. Não tem como amar Deus sem amar o próximo! Porque amor não é abstração. Amor é toque, conexão, relacionamento, cuidado, afeto.

Aí vem João, o discípulo que reclinou a cabeça no peito de Jesus, e diz coisas do tipo:

“Como pode alguém amar a Deus a quem não vê e odiar o seu irmão a quem vê?”
“Quem  diz que ama a Deus mas odeia seu irmão é mentiroso!”
“Quem ama é nascido de Deus e conhece a Deus pois Deus é amor”

Quem ama é nascido de Deus. É filho, tem a mesma substância, a mesma essência.

Não precisa aderir a religião nenhuma, nem cumprir rito, ir na igreja, ser batizado, ungido, sei lá mais o quê. Basta amar. 

E quem ama conhece a Deus. Conhecer, na bíblia, é se relacionar, ter proximidade, intimidade. Mesmo quem não REconhece, se ama, conhece. Mesmo quem não entende, não nomeia, nomeia diferente, não acredita, acredita diferente… se ama, conhece! Porque Deus tá no outro (Mateus 25).

Mas há aqueles que REconhecem Deus nesse Jesus de um mandamento só. Estou entre esses. E porque REconheço, e sei o que ele disse (“amem ao próximo como eu vos amei”), me reúno com alguns para conversar sobre como Ele amou, e como amar como Ele amou.

Mas não porque é uma ordem que eu tenho que cumprir, caso contrário é o inferno, choro e ranger de dentes. Não por culpa e medo.

Jesus não veio pra deixar um mandamento. Veio pra libertar deles.

“Foi pra liberdade que Cristo nos libertou”, nos ensinou Paulo.

Libertou do quê? Da culpa e do medo que a religião, a cultura, a família, a vida vai colocando dentro de nós. A bíblia explica isso com o mito do pecado original. Há, também, muitas outras explicações para esse fenômeno da culpa que assola nossa humanidade. 

O fato é que a gente carrega esse peso. 

E a cruz simboliza libertação. 

Jesus pegando essa coisa toda pra MORRER com ele na cruz e renascer, com ele, livre e leve. Sabendo que Deus tá de bem com a gente. Desde sempre e para sempre. E que Deus é amor.

Resumindo:

Jesus quer a gente livre
pra amar como ele amou.
A cruz tira o fardo.
A ressurreição liberta
e nos coloca em movimento.
A vida dEle é o exemplo de amor
E a gente se junta pra aprender e seguir.

16 de janeiro de 2025

A cabana e o vulcão

A cabana na Reserva Nacional Mocho-Choshuenco, Chile - 2025

Vi a mesma cabana de 27 anos atrás. Era janeiro, eu estava noivo, me casaria em maio, e fiz essa viagem com meu grande amigo e parceiro de roubadas Alexandre, e o Du Bois, uma espécie de professor de montanha que se tornou amigo também. Sem grana, sem internet, sem celular, sem GPS, sem equipamento pra gelo, quase sem informação. A viagem tem muita história, mas vou me manter nessa da cabana. Em parte dela, porque essa também é longa. 

Dois dias antes estávamos em Constituición, litoral do Chile, onde abrimos mais de uma dezena de vias em maravilhosas falésias do Pacífico. Mas queríamos neve, gelo, vulcão, cordilheira. Decidimos pelo vulcão Mocho-Choshuenco, na comuna de Panguipulli, longe do roteiro turístico tradicional.

É onde estou agora, 27 anos depois, acompanhado da minha esposa e uma amiga. Tanta coisa aconteceu nessas quase 3 décadas, e a cabana continua lá. Também seguem firmes as duas casinhas do pueblo de Enco onde naquele passado distante ganhamos um pão quentinho e alguns tomates de um menino, depois de 4 ou 5 dias no vulcão, o último deles sem comida. O pão com tomate mais delicioso da história. As mesmas casas, a mesma cabana. Quantos anos teria hoje o menino que nos trouxe pão?

Hoje vim de carro até a entrada do Parque, peguei informações sobre as trilhas demarcadas, escolhi uma segura que vai até onde agora tem um abrigozinho de montanha e começam as rampas de neve e gelo no verão. Na primeira vez não tinha carro, não tinha parque, não tinha trilha marcada. Só tínhamos um mapinha mal impresso e um ônibus caindo aos pedaços que tivemos que empurrar na rodoviária de Panguipulli. O mapa indicava que, do ponto final à cabana, teríamos que percorrer 4 km. Dali pra cima não sabíamos nada.

Campos de gelo - 27 anos atrás

Começamos a andar no fim da manhã, as mochilas cheias, pesadas, e nada de cabana. Descobrimos depois que houve uma falha de impressão naquele mapa mequetrefe que sumiu com um número 2 antes do 4. Tivemos que andar 24 km e só chegamos na cabana tarde da noite. Tínhamos planejado acampar e descansar um dia no pé do vulcão para subir no dia seguinte, mas a cabana estava aberta e dois montanhistas chilenos estavam lá. Nos receberam, deixaram entrar e era um espetáculo - quentinho, com colchão, lareira, cozinha - mas eles iam iniciar a escalada naquela madrugada. Não podíamos perder a companhia, já que da cabana pra cima não tínhamos mais muita informação.

Hoje, quando contei a uns chilenos que encontramos na trilha que 27 anos atrás eu tinha ido à pé do ponto final até o cume sem nenhum equipamento de gelo, como quem sobe o Anhangava na Serra do Mar paranaense, eles sorriram educadamente. Certamente vão contar por aí sobre o brasileiro mentiroso que encontraram na trilha. Mas, como diria Chicó, só sei que foi assim.

A greta, com o Alexandre já fora dela, final do século passado

Acordamos de madrugada e acompanhamos os chilenos até uma rampa íngreme de gelo ainda na base do vulcão. Lá eles deram meia volta e desceram. Disseram que não tinha como atravessar, que seria preciso crampons, encordamento, bastões e não sei mais o quê. Nós ficamos. Sacamos um único bastão de esqui que achamos na cabana e trouxemos pra trilha, que mais parecia uma vareta de barraca, e saímos picando gelo, degrau por degrau, até atravessarmos a rampa toda. Por baixo de nós corria um rio de degelo onde algumas vezes, no gelo mais fino, afundávamos os pés. Foi um processo, lento, demorado e assustador. Depois da rampa seguimos por enormes campos de gelo, rampas mais e menos íngremes de neve às vezes mais fofa, às vezes mais firme, blocos de rocha, vários falsos cumes, até alcançarmos o ponto mais alto do Mocho. Eu quase morri de canseira. Cheguei a desistir e dizer para meus companheiros seguirem sem mim. Mas não deu 10 minutos e eles voltaram dizendo que o cume estava ali pertinho - e fui e chegamos lá os três.

Dentro da cratera, no cume

Hoje a neve estava bem mais recuada. A maior parte da trilha foi por um bosque belíssimo e um campo florido, e o destino era um mirante ainda perto da base.

27 anos atrás, depois do cume, resolvemos descer por outro caminho, para evitar a rampa de gelo que era bastante apavorante. Hoje, conversando com o guarda-parque, descobri que o trecho que escolhemos descer no final do século passado, é uma grande glaciar com 60 metros de altura de gelo acumulado. Quando passamos por lá tinha havido uma nevasca enorme e rara em pleno verão que cobriu a geleira e o campo florido. Passamos por cima dela sem nem saber da sua existência, a não ser pelo momento em que o Alexandre desapareceu. Só ouvimos o grito. Quando nos aproximamos devagar vimos ele entalado em uma rachadura na nave. Era um buraco sem fundo, talvez, como soube hoje, com 60 metros! Eu e o Du Bois tínhamos passado por ali tranquilamente, mas quando o Alexandre passou a neve cedeu. Graças a Deus era uma fenda estreita e ele entalou. Não tínhamos corda nem nada. Pra tirar ele de lá tiramos nossas roupas, amarramos uma na outra e puxamos ele. Ainda bem que não contei isso pros chilenos. Ia ser demais.

Os campos floridos em 2025

Hoje, com a Sandra, minha esposa, e a Paula, nossa amiga, parei bem antes. Adquiri, com o passar dos anos, uma dose de bom senso mais razoável. Vontade de seguir subindo não faltou, mas hoje ninguém mais faz o que se fazia há 27 anos.

Tem sinal - 2025

14 de janeiro de 2025

O cerro e o templo

Cerro Castillo - Patagônia chilena

Fiz uma peregrinação a um templo sagrado. Um que foi erguido há 65 milhões de anos diretamente pelas mãos de Deus. O chamam Cerro Castillo (Monte Castelo), mas para mim era um templo, o maior e mais majestoso já construído.

Os peregrinos que iam chegando depois de horas de caminhada, quando concluíam o último trecho, faziam a última curva e davam de cara com a indescritível imensidão do Castillo, fossem cristãos, ateus, agnósticos, muçulmanos, candomblecistas, fossem o que fossem ou não fossem, tivessem ou não qualquer tipo de fé, paravam, estáticos, boca entreaberta, ombros prostrados em adoração, muitos, como eu, com os olhos cheios de lágrima e, em silêncio reverente, caminhavam lentos até onde pudessem sentar e ali ficavam, estarrecidos diante do altar.

Deus, que prefere se revelar nos pequeninos, nos enfraquecidos, fragilizados, empobrecidos, nos que não tem o que comer ou vestir, nos que não tem onde reclinar a cabeça, ali decidiu revelar-se em toda a sua glória e majestade.

O cenário todo era espiritual. O altar do templo era imensidão de neve, glaciares, tortuosas corredeiras de degelo e rochas em tamanhos e ângulos impossíveis. A abóbada era o azul celeste infinito e o piso uma lagoa verde esmeralda salpicada de centenas de milhares de pontos de luz piscante como um céu absurdamente estrelado em plena luz do dia.

Um condor solitário e sublime cruzou o céu entre nós e a montanha naquele exato instante, surgindo não sei de onde e encenando uma dança de louvor ao Eterno.

Não havia nada a ser dito. Nenhum salmo, nenhum hino, nenhuma oração. Diante da presença do criador, o silêncio e as lágrimas sutis eram a única forma possível e inevitável da adoração.

Mas nós tínhamos que descer. Teríamos ainda horas de trilha pela frente. Quando virei as costas para a montanha e dei os primeiros passos, tive a impressão de ouvir o coro de dez mil anjos, cordas e metais entoando hosanas. Talvez fosse só o barulho do vento. Ou a presença pulsante de Deus, que descia a montanha em mim.

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A descrição do Cerro Castillo como templo foi uma tentativa de dizer um pouco do que verdadeiramente senti quando estive lá. Mas foi só um lado da história. Naquela descrição omiti algo que quero agora mencionar.

Diante de toda aquela beleza indizível senti também horror e desespero. Entre as lágrimas de louvor e gratidão escorriam também algumas de profunda angústia. Porque diante de mim havia um glaciar que vinha encolhendo ano após ano graças ao aquecimento global provocado por uma espécie específica de mamíferos.

Todas as grandes transformações do nosso planeta foram provocadas por catástrofes naturais. Até hoje. Estamos agora diante de uma tragédia aceleradamente provocada por nós mesmos.

Nós que, feitos à imagem e semelhança do criador, criamos arte, poesia, música, culturas incríveis, vastidão de conhecimento. Nós que criamos medicina e medicamentos e vacinas e salvamos centenas de milhares de vidas. Nós que praticamos atos de bondade gratuita, que produzimos justiça, inventamos democracia, agimos de forma altruísta em atos heróicos de bravura e graça, também nos entregamos à estupidez, idiotice, ganância, egoísmo e pusemos tudo a perder. Nos jogamos ensandecidos em uma cruzada de destruição e morte e autoflagelo e autofagia e extermínio mútuo e de tudo mais.

Nós, que diante do altar entoamos louvores, nos lançamos às colunas do templo e as destruímos em troca de miudezas, e agora o templo todo desaba sobre nossas cabeças.

30 de setembro de 2024

A imagem do Cristo em mim


A lembrança mais remota que tenho de minha existência é a imagem de um cachorrinho de plástico, branco e amarelo, pendurado em meu berço, balançando sobre minha cabeça, e a voz de uma mulher que canta:

"Jesus escuta, a voz terninha, da criancinha, em oração..."

Não vejo exatamente o rosto dela, mas ouço sua voz com muita clareza, e sinto o toque dos seus dedos na minha pele macia, na penugem dos cabelos.

Não sei quantos anos tinha. Não consigo colocar essa memória em uma linha do tempo. Não sei em que casa era. Mas ouço. Há quase 50 anos ouço essa voz e essa canção.

"... E também sabe, dos seus intentos, e pensamentos, do coração"

Esse ano completo meio século de vida. E de um jeito ou de outro, com maior ou menor intensidade, Jesus de Nazaré foi sempre a referência em torno da qual circulei. Sei, e sempre soube, que isso nasceu daquela voz, sussurrando pra dentro de mim uma beleza indizível, imensurável, amorosa e redentora, e me revelando que o nome dessa beleza é Jesus.

Nesse meio século procurei Jesus em livros, retiros, encontros, reuniões, nas muitas conversas com muita gente boa, no serviço, no acolhimento, no relacionamento com o outro, na teologia. E, de muitas formas, O encontrei em cada um desses lugares.

Mas, ainda hoje, 50 anos depois, se estou carente, se estou triste, se estou sozinho, se estou com medo, se estou com dor, como a dor que agora sinto, que é saudade, que é distância, que é ausência do que temo um dia perder, se careço da beleza indizível, imensurável, amorosa e redentora que me sussurrou aquela voz, se quero Seu abraço, Seu hálito, Seu afeto, não sei de forma melhor para encontrá-lO do que, sozinho em algum canto, fechando os olhos, ouvir de novo aquela voz, aquela canção.

No fim das contas, meio século depois, descubro que a imagem mais intensa, profunda e presente do Cristo em mim está na minha primeira memória de infância. Na voz doce da minha mãe.

❤️

8 de julho de 2024

Walden | Thoreau

Foto: www.chirpbooks.com


Em 2022, na rebarba final da pandemia, li Walden junto com a rapaziada do saudoso clube do livro que existiu e resistiu durante alguns anos aqui na cidade. Fiquei tocado, de capa a capa. Diz muito sobre meu eu profundo, que ainda arfeja sob os entulhos acumulados do cotidiano capitalista que nos engole sem dó. Hoje fui lembrado do livro pela mulher que amo. Corri para reler minas notas e fui novamente esbofeteado pelo espanto original. Achei interessante publicar aqui, nesse lugar onde ninguém mais habita, mas que ainda alimento com sobras para não deixar morrer.

Walden - A vida nos bosques
H. D. Thoreau

A maioria dos luxos e muitos dos chamados confortos da vida não apenas são dispensáveis como são, com efeito, obstáculos à elevação. Com relação a luxo e conforto, o sábio sempre viveu uma vida mais simples e frugal que o pobre. Os filósofos antigos, chineses, hindus, persas e gregos eram uma classe como não havia outra tão pobre em riquezas exteriores, nem tão rica em riquezas interiores. Não sabemos muito sobre eles. E notável que nós saibamos tanto sobre eles quanto sabemos. O mesmo é verdade para os reformadores e benfeitores mais modernos de suas raças. Ninguém pode ser um observador imparcial ou sábio da vida humana fora do terreno privilegiado do que nós deveríamos chamar de pobreza voluntária. De uma vida de luxos, o fruto é luxo, seja na agricultura, no comércio, na literatura ou na arte. (p18)


Não faz muito tempo, um índio andarilho foi vender cestos na casa de um conhecido advogado da minha região. "Quer comprar alguns cestos?", ele perguntou. "Não, não queremos nenhum cesto", foi a resposta. "Como assim!", exclamou o índio ao sair pelo portão, "quer que a gente morra de fome?". Vendo que seus industriosos vizinhos brancos estavam bem de vida e que o advogado só precisava tecer argumentos e, como por mágica, conquistava riqueza e posição, ele havia pensado: vou fazer negócio - faço uns cestos, é uma coisa que sei fazer. Pensou que, depois que os cestos estivessem prontos, sua parte estaria feita, e caberia ao branco comprá-los. Ele ainda não tinha descoberto que era necessário fazer que comprar seus cestos valesse a pena para o outro, ou pelo menos fazer que o outro assim pensasse, ou fazer alguma outra coisa que o outro julgasse valer a pena comprar. Também teci uma espécie de cesto de delicada tessitura. mas não consegui convencer alguém de que valia a pena comprá-lo. E, não obstante, no meu caso, julguei que valia a pena tecê-los, e em vez de estudar como fazer para que os outros homens julgassem que valia a pena comprá-los, preferi estudar como evitar a necessidade de vendê-los. O tipo de vida que os homens apreciam e admiram como bem-sucedida é um só. Por que exaltar um único tipo de vida em detrimento dos outros todos? (p22)


Cuidado com qualquer empreitada que exija roupas novas e não um novo homem dentro das roupas. (p26)


Toda geração ri das modas antigas, mas segue religiosamente as atuais. (p28)


No estado selvagem cada família possui um abrigo da melhor qualidade possível, e suficiente para suas necessidades mais primitivas e simples, mas creio que falo com fundamento quando digo que, embora as aves no céu tenham seus ninhos, e as raposas suas tocas, e os selvagens suas wigwams, na sociedade civilizada moderna menos da metade das famílias possui casa própria. Nos grandes centros e cidades, onde a civilização predomina especialmente, o número de pessoas com casa própria é uma fração muito pequena do total. O resto paga todos os anos uma taxa por esse traje externo a tudo, que se torna indispensável no verão e no inverno, cujo valor daria para comprar toda uma aldeia de tendas indígenas, mas que agora ajuda a manter o cidadão pobre pelo resto da vida. Não pretendo aqui insistir na desvantagem de ser inquilino em comparação a ser proprietário, mas é evidente que o selvagem é dono de seu próprio abrigo porque custa muito barato, enquanto o civilizado aluga em geral porque não tem o suficiente para comprar; nem, no longo prazo, para alugar nada melhor. (...) E quando o agricultor se torna proprietário de sua casa, talvez não se torne mais rico, porém mais pobre, e talvez a casa é quem seja sua proprietária. (p32-34)


Essa é a lei universal... fazer uma ferrovia ao redor do globo acessível a toda humanidade é o equivalente a aplainar toda a superfície do planeta. Os homens tem uma noção instintiva de que se continuarem com essas ações, de bolsas e pás, por tempo suficiente, acabarão chegando a algum lugar, quase na mesma hora, quase de graça; mas, embora uma multidão se aproxime da estação e o condutor grite "Todos a bordo!", quando a fumaça é soprada e o vapor condensado, acabarão percebendo que alguns estão acomodados, mas o resto está sendo atropelado - e isso se chamará, e será, "um acidente melancólico". Sem dúvida, poderão partir enfim aqueles que pagaram passagem, isto é, se sobreviverem até lá, mas provavelmente já terão perdido a elasticidade e o desejo de viajar nessa altura da vida. O desperdício da melhor parte da vida ganhando dinheiro para desfrutar uma liberdade questionável durante a parte menos valiosa da vida me lembra do inglês que foi à Índia fazer fortuna primeiro, para depois voltar à Inglaterra e viver como um poeta. Ele deveria ter subido para o sótão desde o início. "O quê?", exclamam um milhão de irlandeses vindo de todos os barracos da região. "Você está dizendo que essa ferrovia que nós construímos não é uma coisa boa?". Sim, respondo, comparativamente boa, isto é, podia ter sido pior; mas eu preferiria, como vocês são meus irmãos, que tivessem aproveitado melhor seu tempo, não cavando esta lama. (p50)


[ sobre juntar coisas ] Excederia as forças de um homem saudável hoje em dia pegar sua maca e andar (Jo 5.8). (p62)


Há costumes de algumas nações selvagens que talvez possa ser proveitoso imitarmos, pois ao menos guardam uma semelhança com a troca de pele anual: possuem a ideia da coisa, seja ela realidade ou não. Não seria bom se celebrássemos o busk, ou "festa dos primeiros frutos", como Bartram descreve ter sido costume dos índios muclasse?" Quando uma aldeia celebra o busk", ele diz, "depois de vestirem roupas novas com novas panelas, frigideiras e outros utensílios domésticos e outros móveis, eles reúnem todas as roupas velhas e outras coisas indesejáveis, varrem e limpam as casas, praças e toda a aldeia de toda sujeira, que juntam a todo cereal velho e toda provisão restante em uma mesma pilha, que se consome em chamas. Depois de ingerirem uma droga, e jejuarem por três dias, apagam toda fogueira que houver na aldeia. Durante o jejum, eles se abstém da gratificação de todo e qualquer apetite ou paixão. É proclamada anistia geral: todos os malfeitores podem voltar à aldeia. "Na quarta manhã, o sumo sacerdote, esfregando madeiras secas, acende uma nova fogueira em praça pública, a partir da qual cada casa da aldeia é suprida com uma chama nova e pura. Então fazem um banquete com o milho novo e os primeiros frutos e dançam e cantam por três dias, e nos quatro dias seguintes recebem visitas e festejam com os amigos das aldeias da região, que da mesma forma se purificaram e se prepararam". (p63)


O vento da manhã sopra eternamente, o poema da criação é ininterrupto, mas poucos são os ouvidos que o escutam. (p76)


[ Questionando o 'ter' ] Havia sido um homem rico sem prejuízo da minha pobreza. (p74)


A manhã é quando estou desperto e dentro de mim existe uma alvorada. A reforma moral é o esforço de se espreguiçar para se livrar do sono. Por que será que os homens pouco se dão conta do dia quando não dormiram? Eles não são tão ruins em fazer contas. Se não estivessem dominados pela letargia, teriam feito alguma coisa. Milhões estão acordados o suficiente para o trabalho mas apenas um em um milhão está acordado o suficiente para um esforço intelectual efetivo, e apenas um em cem milhões para uma vida poética ou divina. Estar desperto é estar vivo. Ainda não conheci ninguém desperto. Como eu poderia olhar em seus olhos? (p80)


Se não buscarmos nossos dormentes, forjarmos nossos trilhos, e dedicarmos dias e noites remendando nossa vida tentando melhorá-la, quem construiria as ferrovias? E se a ferrovia não ficar pronta, como chegaremos ao céu a tempo? Mas se ficarmos em casa e cuidarmos de nossa própria vida, quem haverá de querer ferrovia? Nós não usamos a ferrovia: a ferrovia é que nos usa. Você alguma vez pensou no que são aqueles dormentes em trilhos? Cada dormente é um homem, um irlandês ou um ianque. Trilhos foram postos sobre eles, e eles estão cobertos de areia, e vagões deslizam suavemente por cima deles. São dormentes pesados, eu garanto. E a cada par de anos um novo lote é deitado e lhe passam por cima de modo que, se alguns têm o prazer de correr sobre os trilhos, outros têm a infelicidade de passar por cima deles. E quando atropelam um sonâmbulo, um dormente extranumerário na posição errada, e o acordam, subitamente freiam o trem, e fazem alarde e choram, como se fosse uma exceção. (p82)


Dificilmente um homem cochila meia hora depois do jantar, mas quando ele acorda, ergue a cabeça e pergunta: "Alguma novidade?" como se o resto da humanidade tivesse ficado de sentinela. Algumas pessoas podem para ser acordadas a cada meia hora, sem dúvida com o mesmo intuito então, como recompensa, contam-nos seus sonhos. Após uma noite de sono as novidades são tão indispensáveis quanto o desjejum. "Por favor, contem alguma novidade que tenha acontecido com alguém em algum lugar do mundo" e ele lê, durante o café com pão que um sujeito teve os olhos arrancados hoje de manha no rio Wachito; sem sequer sonhar que ele mesmo vive na escuridão da caverna insondável deste mundo, e também tem apenas olhos rudimentares. (p83)


Trata-se de uma experiência surpreendente e memorável, além de valiosa, perder-se na floresta em algum momento. (...) Só depois que nos perdemos, em outras palavras, quando perdemos o mundo, começamos a nos encontrar, e a nos dar conta de onde estamos e da extensão infinita das nossas relações. (p151)


Deveríamos voltar para casa sempre de longe, de aventuras, e perigos e descobertas, todos os dias, a cada dia com uma nova experiência e um novo caráter. (p181)


Se o dia e a noite são tais que você saúda com alegria, se a vida emana uma fragrância como a de flores e ervas de perfume adocicado, se é mais elástica, mais estrelada, mais imortal - eis o seu sucesso. Toda natureza se congratula consigo, e você momentaneamente pode se sentir abençoado. (p188)


Cada homem é construtor de um templo, que é seu corpo, ao deus que ele adora, a partir de um estilo puramente seu, e do qual ele não pode escapar esculpindo em mármore em vez de a si mesmo. Somos todos escultores e pintores, e nosso material é a nossa própria carne, nossos próprios sangue e ossos. Qualquer nobreza começa imediatamente a refinar o semblante de um homem; qualquer baixeza ou sensualidade, a embrutecê-lo. John Farmer sentou em sua soleira uma noite de setembro, após um dia duro de trabalho, a cabeça um pouco ainda no trabalho. Depois do banho, ele se sentou ali para recriar seu homem intelectual. Havia esfriado um pouco, e alguns vizinhos estavam apreensivos esperando geada. Nem bem embarcara em seus pensamentos quando ouviu alguém tocando uma flauta, e aquele som se harmonizou com seu estado de espírito. Ele continuou pensando no trabalho; mas o fardo desse pensamento, embora continuasse em sua cabeça, e ele se pegasse fazendo planos e elucubrando contra a própria vontade, pouco lhe importava. Não passava de pele seca, constantemente descamada. As notas da flauta chegaram à sua casa, em seus ouvidos, vindas de uma esfera diferente daquela em que ele trabalhava, e sugeriam um trabalho a certas faculdades que nele estavam adormecidas. Delicadamente, aquelas notas fizeram desaparecer a rua, a vila, e o estado em que ele vivia. Uma voz disse a ele: Por que você fica aqui e vive essa vida dura e mesquinha, sendo possível uma existência gloriosa? Aquelas mesmas estrelas brilham sobre outros campos além desses. Mas como sair dessa condição e migrar efetivamente lá? Só para conseguiu pensar em praticar alguma nova austeridade, para fazer que a mente influísse em seu corpo e o redimisse, e tratar a si mesmo com um respeito cada vez maior. (p192)


E, ai, cuidar da casa!, deixar brilhantes as maçanetas do diabo, e esfregar suas banheiras neste dia claro! Melhor não ter casa para cuidar. Digamos, morar no oco de uma árvore; e ali ter como visitas matinais e festas noturnas, apenas um Pica-Pau. (p195)


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A paginação mencionada está baseada na versão da Edipro, de 13 de fevereiro de 2020, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza.